segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Reminiscência

Conversando com um colega de trabalho, lembrei de um fato da minha infância. Um dia, quando tinha cerca de nove ou dez anos, voltando da aula me deparei com um aglomerado de pessoas em torno de um cavalo. O animal havia enganchado a pata em um buraco e, na tentativa de dar mais um passo, quebrou o membro. O dono informou que iria sacrificá-lo. O animal, que outrora lhe servia, já não tinha valor. Naquele dia, cheguei em casa aos prantos com pena do bichinho de olhar triste e decidi que seria veterinária, assim, toda vez que encontrasse um animal sofrendo poderia levá-lo ao ‘meu consultório’ e resolver o problema. Cresci, ganhei olhos de gente grande. Não me tornei veterinária. Ao invés disso, optei pelo jornalismo, que faz enxergar, quase todos os dias, um pedacinho diferente do mundo precisando de conserto. Percebi que não existe um ‘consultório’ onde se possam sanar todas as mazelas do mundo. Mas ainda acredito que se mantivermos vivos os sonhos e a sensibilidade das crianças, esse mesmo mundo pode ser sim melhor.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

A redação

Já vi muitos amigos passarem por essa redação... Já dividi computador com outros repórteres com mais tempo de casa, cobri visitas do então presidente Lula e outras pautas que ficaram em minha memória. Hoje, sou uma das mais antigas dessa redação.

Prestes a completar 9 anos de Gazeta, posso dizer que, aqui, nessa redação, me sinto à vontade e vivi momentos muito bons. (Alguns bem difíceis também, devo confessar). A vida de repórter/editor/pauteiro nem sempre é fácil. Às vezes lidamos com situações que são difíceis de assimilar, dramas pessoais que nos tocam profundamente, injustiças que são caladas, fontes nem sempre acessíveis...

Pensa que é fácil? Imagine fazer uma matéria com uma mãe que perdeu um filho por causa de um erro médico ◄ Essa foi uma das pautas mais difíceis que já fiz na minha vida, eu estava começando no jornal e tive que escrever sobre esse caso. A pessoa tem que controlar  as lágrimas, a revolta que dá com o sistema e fazer as perguntas difíceis (de forma respeitosa). O repórter não pode perder esse sentimento, não pode achar normal coisas assim só porque estão inseridas em seu dia-a-dia. Quer saber? Nunca me acostumei. Tenho orgulho de me sentir assim.

Iuska Freire



sexta-feira, 15 de junho de 2012

A última entrevista com Dorian



Dentro de um cesto de vime, jornais e revistas, recortes, cadernos de cultura de outros Estados. Penduradas, a um canto da estante, duas ou três bonecas sorriam, despreocupadas, sob o reflexo do sol da tarde que entrava pela janela amarronzada

Mário Gerson
Jornalista e editor do caderno Expressão 

Dorian Jorge Freire foi um jornalista incomum. Incomum porque, diferente de muitos de agora, preocupava-se em se informar de maneira exaustiva sobre os dramas do país que estavam sendo debatidos, de forma séria, por grandes jornais e grandes mentes brasileiras.
Hoje, alguns acreditam quase impossível parar para uma “reflexão aprofundada sobre os temas vigentes” e saem de fininho, com a xícara de café numa das mãos e o copo com água, na outra.
Dorian Jorge Freire faleceu em 2005, mantendo o hábito de ler os grandes jornais, os autores do passado e os de agora, para os quais, algumas vezes, dirigia elogios, possivelmente a fim de que esses (uma boa parte) melhorassem aquele texto apresentado ao jornalista veterano.
Escritor, acima de tudo, de uma obra dispersa em jornais e revistas, Dorian, aos poucos, vai se apagando da memória de nossa imprensa, cada vez mais afeita à política e ao sangue, com raras exceções, nas quais podemos notar uma “reflexão aprofundada”.
A memória, porque sabemos mutável, é também traiçoeira. Podia me lembrar, até pouco tempo, de coisas de dois ou três anos atrás, mas hoje preciso de cadernetas, muitas delas rabiscadas com uma letrinha pequena, sem linearidade alguma, parecida com a recomendação que prescreve um medicamento e o farmacêutico entende outro.
Agora, que quero abandonar este pequeno rodeio para entrar no tema lá de cima, o que me vem à lembrança é a imagem de Dorian na biblioteca. Ao lado, o sininho que chamava Silene, a empregada doméstica da casa. Dentro de um cesto de vime, jornais e revistas, recortes, cadernos de cultura de outros Estados. Penduradas, a um canto da estante, duas ou três bonecas sorriam, despreocupadas, sob o reflexo do sol da tarde que entrava pela janela amarronzada, coberta de uma pequena camada de poeira fina, advinda dos ventos do quintal.
O velho sorria. Sorria aquele sorriso de gratidão. Uma visita aplacava, de certa maneira, a solidão de Dorian, a sua angústia por conversar pouco e se isolar ali, num mundo de livros e de fantasmas que sempre surgiam, quando a tarde caía e ele acabava por terminar as últimas notas de sua coluna, batida numa velha Olivetti elétrica, escrita, apenas, com dois dedos, em que escolhia bem todas as palavras e excluía, nos últimos tempos, alguns “adjetivos indesejáveis”.
Era um estilo diferente. Uma página inteira de jornal se escrevia durante uma semana, com dois dedos e muita cultura, principalmente literária, coisa em falta em muitas cabecinhas de agora (mas Deus, um dia, olhará por nós e por todos. Amém!). Um jornalista sem leitura é como um corpo sem alma. Nem precisa dizer mais. Precisamos enterrá-lo, pois que sobre a terra e entre nós, este corpo exalará um péssimo odor.
Quando completou 57 anos de jornalismo, Dorian me concedeu uma entrevista descontraída. Pedia que escrevesse isso e aquilo: “Escreva: Ignácio de Loyola é meu amigo”... e, assim, sucessivamente. Depois de algumas perguntas e umas xícaras de café servidas por Silene (com aquele sorriso branco, lindo e complacente), perguntei-lhe o que um bom jornalista devia saber fazer: “Deve dizer a verdade e saber escrever”. Na última opção, sorriu: “Os jornalistas de São Paulo não sabiam escrever”, falou e emendou, completando que Samuel Wainer era “um bom repórter”. “Mágoa do ex-patrão?”, perguntei e ele sorriu, timidamente, apontando “o mentiroso livro de Wainer” (Minha Razão de Viver, Memórias de um Repórter).
Por fim, falou sobre as boas experiências, pausadamente, porque os sucessivos AVC’s deixaram seqüelas na voz e em alguns dedos das duas mãos do jornalista (com dificuldade escrevia, letra por letra, a coluna publicada na GAZETA, aos domingos)... Depois, nos despedimos. Era 18 de julho de 2005, 17h. No dia 24 de agosto daquele mesmo ano, Dorian faleceria. Deixou um dos legados mais importantes da história da imprensa contemporânea deste Estado... e suas memórias por escrever.